“BEIJO-MÃO”                   Novo artigo de Demétrius Faustino

BEIJO-MÃO

Demétrius Faustino

Li um artigo publicado no jornal o Estadão, onde o subscritor revela a subserviência do Supremo Tribunal Federal ao Marechal Floriano Peixoto, onde os habeas corpus (instituto este cuja origem é do direito anglo-saxão, mas sua implementação no Brasil se deve muito ao brilhante Ruy Barbosa, admirador da tradição britânica e defensor da liberdade) impetrados em favor de presos e perseguidos sempre tinham a ordem denegada.

Ele próprio, o advogado Ruy Barbosa, impetrou essa medida jurídica várias vezes, mas a corte suprema, que é outra criação sua, entendia, como afirmado, denegar a ordem, por entendimento jurisprudencial, formalismo ou mera submissão ao usurpador do poder.

Relata ainda, o autor do artigo, que certo dia, um juiz paulista teve a coragem de discordar, e quebrou a unanimidade do STF. Seu nome: Piza e Almeida. Conta-se que foi um momento de espanto, em que a alma nacional se viu concebida e aliciada pelas vibrantes palavras de um julgador.

Após o julgamento, e em ato contínuo, o grande Ruy Barbosa, celebrado no Brasil e no mundo, depois de sua destacada atuação na Conferência de Paz em Haia, no ano de 1907, com a humildade que lhe era peculiar, aproximou-se do magistrado e lhe pediu para beijar a mão.

Foi esse o momento culminante da vida do grande brasileiro, na visão dos amantes da sua biografia. 

E Ruy, com seu estilo personalíssimo de escrever, fez questão de anotar o episódio:

“Havia no tribunal, ao cair dos votos que denegavam o habeas corpus, a impressão trágica de um naufrágio, contemplado a algumas braças da praia, sem esperança de salvamento, de uma grande calamidade aos nossos olhos, de uma sentença de morte, sem apelo, que ouvíssemos pronunciar contra a pátria, do bater fúnebre, pregando entre as quatro tábuas de um esquife, a esperança republicana… Quando, subitamente, fragorosa salva de palmas, seguida ainda por outra, após a admoestação do presidente, nos deu o sentimento de uma invasão violenta da alegria de viver. Era o voto do Sr. Piza, concedendo o que todos os colegas haviam recusado. E, sob a influência de uma emoção religiosa, que me recorda vivamente a de minha adolescência, aproximando-se alvoroçada e trêmula do altar para receber a minha Primeira Comunhão, o Deus de meus pais, eu me cheguei depois da sessão, quase sem voz, ao Sr. Piza e Almeida, pedindo-lhe que me permitisse o consolo de beijar a mão de um justo”. 

É o relato contido no livro “O Estado de Sítio, sua natureza, seus efeitos, seus limites”, um dos muitos que Ruy Barbosa publicou em vida.

E transcorridos cem anos de sua morte, essa tradição de reverência se tornou definitivamente um gesto simbólico, e que permanece sendo utilizado. Citamos um exemplo nosso: quando nos dirigimos para receber a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, na Seção Paraíba, momento significativo para um estudante de Direito, além das saudações, recebemos esse beijo na mão do presidente à época, o Advogado Vital do Rego.

Ruy Barbosa, um modelo de virtudes; a pena que derrubou o império, nos legou o exemplo de sua vida, onde laborou até o final de sua existência física. O que produziu continua acessível para uma nação carente de leitura, que não gosta de escrever, e que não estuda português. 

Entretanto, um dos personagens mais marcantes da história nacional, com sua oratória arrebatadora, um justo com a coragem de discordar, recebeu apenas, e é verdade, aquela glória retardada, gelada e impercebível, que é o reconhecimento depois da morte.

Entretanto, nada também como a posteridade para corrigir reputações. E essa posteridade lhe deu ganho de causa.

João Pessoa, abril de 2024.