A ESTATÍSTICA CRUEL DO FEMINICÍDIO – Artigo de Demétrius Faustino

A ESTATÍSTICA CRUEL DO FEMINICÍDIO

Demétrius Faustino

Era uma noite quente. A lua cheia iluminava a cidade, mas na casa ao lado, a escuridão dominava. Maria, como tantas outras, vivia entre silêncios cortantes e gritos abafados. O vizinho ouviu o barulho, mas não quis se meter. “Briga de casal”, pensou. Na manhã seguinte, Maria não abriu a janela. Seu nome agora entrava para uma estatística cruel: feminicídio.
O Brasil é um país de extremos. De um lado, o calor das praias, o brilho do carnaval, a hospitalidade que encanta quem chega. Do outro, a frieza de uma estatística que se repete, que se impõe como um soco seco no estômago: mulheres seguem morrendo apenas por serem mulheres.
É curioso como somos mestres em celebrar a vida. Samba no pé, cerveja na mão, o famoso jeitinho para transformar qualquer problema em piada. Mas quando o assunto é feminicídio, o silêncio grita. Um silêncio incômodo, como se a dor das Marias, das Joanas, das Anas não fosse nossa também.
Até que um novo nome surge no noticiário. Mais um caso. Mais uma história interrompida pela brutalidade. E, por um instante, a indignação toma conta. Textos indignados circulam nas redes sociais, hashtags se espalham, rostos desconhecidos viram rostos próximos. Mas logo a rotina engole a tragédia, e tudo volta ao normal. Pelo menos, até que outra mulher caia.
A pergunta que fica é: até quando? Até quando fingiremos que não é com a gente? Até quando trataremos cada caso como um evento isolado e não como o sintoma de uma doença crônica? O Brasil, esse país de contrastes, precisa decidir se continuará aplaudindo a alegria enquanto finge não ver a dor de tantas mulheres. Porque o silêncio não protege ninguém. Pelo contrário: ele mata.
Feminicídio não é apenas o assassinato de uma mulher; é o resultado de uma cultura que desvaloriza a vida feminina e de uma sociedade que, por décadas, tem sido conivente com o desrespeito às mulheres. O Brasil está entre os países que mais registram casos de feminicídio no mundo, e os números alarmantes são apenas a ponta do iceberg. Muitos casos sequer são notificados adequadamente ou acabam tratados como “homicídios comuns”.
Mulheres ainda são vistas como propriedade, e suas vidas, desvalorizadas. Dar visibilidade a essa realidade é essencial para expor os silenciamentos e opressões que, por séculos, moldaram a experiência feminina no Brasil.
Não podemos olhar para o feminicídio de maneira isolada. Ele reflete uma estrutura social profundamente desigual, que combina violência de gênero com pobreza e racismo. As mulheres negras, especialmente as periféricas, são as principais vítimas dessa violência. O contexto econômico e racial agrava ainda mais a situação, tornando o problema urgente e complexo.
A luta contra o feminicídio exige não apenas o fortalecimento de leis e iniciativas de proteção às mulheres, mas também a sua efetiva aplicação. A Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) alterou o Código Penal para classificar o feminicídio como uma qualificadora do homicídio, aumentando as penas para esses crimes. Já a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) trouxe avanços significativos, estabelecendo medidas protetivas de urgência e penalizações mais rígidas para agressores. No entanto, na prática, a eficácia dessas leis ainda deixa a desejar na maioria dos casos.
O feminicídio no Brasil é uma realidade cruel e devastadora, que expõe de forma alarmante a violência de gênero que persiste em nossa sociedade. Esse crime, que é caracterizado pelo assassinato de mulheres em razão de sua condição de gênero, representa um reflexo de uma cultura histórica de desigualdade e misoginia profundamente enraizada. A magnitude dessa tragédia exige um combate sério, urgente e multifacetado, que envolva tanto políticas públicas eficientes quanto uma transformação cultural que valorize, respeite e proteja as mulheres, sendo a efetiva aplicação das leis o primeiro passo crucial para mudar esse cenário.
João Pessoa, março de 2025.